Governador Valadares ainda enfrenta consequências dos desvios de recursos para socorrer a cidade na chuva de 2013. Moradores improvisam obras. Outros sofrem perdas nos negócios

Governador Valadares – Claudinéia Araújo, de 43 anos, fica indignada toda vez que observa o que restou da Rua da Passagem, em Governador Valadares, onde a última forte temporada de chuva, em 2013, causou vários estragos que, até hoje, não foram reparados pelo governo. Parte do dinheiro público que deveria ser usado nas obras foi surrupiada por uma quadrilha liderada por agentes municipais, dando origem à operação Mar de Lama, a maior força-tarefa da atualidade em Minas Gerais e que já levou 15 pessoas para trás das grades.
“Cerca de 80% dos R$ 4,7 milhões repassados pela União foram desviados”, calculou o delegado da PF Cristiano Campidelli. O dinheiro foi liberado pela presidente Dilma Rousseff, então em exercício, depois de constatar in loco os estragos. Quase 10 mil pessoas ficaram desalojadas ou desabrigadas.
A fraude só foi possível porque contou com a participação de empresários. Donos das firmas receberam do Saae por serviços não realizados ou feitos em quantidade menor do que o previsto no contrato. O pagamento era rateado entre servidores e empresários. A população ainda sofre com os transtornos causados pelo temporal.
Um trecho da Rua da Passagem, por exemplo, foi engolido por uma cratera. “Nós, moradores, levantamos a travessia de madeira, porque o poder público nada fez até agora”, cobrou Claudinéia. A passarela improvisada foi erguida duas vezes, como informou o pedreiro Joel Neves Moreira, de 40. “Dói pagar impostos e ver que quando a gente precisa, corruptos desviam o dinheiro”.
PREJUÍZO Os danos causados pelo temporal de 2013 também afetaram o dia a dia de quem mora na área rural. A chuva danificou estradas de terra e pontes, causando prejuízo aos produtores de leite, pois os caminhões dos grandes laticínios da região não têm como chegar às propriedades. Para amenizar a perda de receita, alguns fazendeiros se uniram para custear parte de obras que deveriam ser feitas com o dinheiro público.
“A população é que recolocou a ponte (sobre o Córrego Cassianinho) no lugar. Ainda assim, os caminhões dos quatro grandes laticínios da região não passam nela. Eu queria ampliar a produção de leite, de 80 litros por dia para 200 litros. Mas não posso. Outros fazendeiros também suspenderam investimentos”, lamentou Vander Soares, de 77.
O percurso da fazenda dele à casa que a família tem em Valadares é de 27 quilômetros. O dano causado pela última temporada de chuva forte e a ausência de manutenção adequada desde então pelo poder público, sustenta Vander, tornou o trajeto no trecho uma aventura que não vale a pena. “O percurso alternativo é de 65 quilômetros”, acrescenta Bruno, filho do fazendeiro. Para não perder toda a produção de leite, a família começou a fazer queijo.
O também criador de gado Anísio Ferreira, de 42, acredita que R$ 10 mil sejam suficientes para erguer outra ponte sobre o Cassianinho. Há poucas semanas, revelou, ele e amigos fizeram uma vaquinha e contrataram um trator para recuperar um trecho da estrada de chão. “Cada um deu um pouquinho. Eu desembolsei R$ 100. O total ficou em R$ 4 mil.
Já a Prefeitura de Valadares informou que “o município tem 1,8 mil quilômetros de estradas vicinais, que recebem manutenção constantemente”. Em relação à Rua da Passagem, a administração informou que a recuperação da via faz parte do programa de contenção de encostas, “cujo projeto para recuperação está sendo viabilizado pela Secretaria Municipal de Obras”.
O Executivo informou ainda que “reafirma seu integral apoio a todas as ações que visam ao combate a quaisquer atos ilícitos no âmbito da administração pública e que, para tanto, tem colaborado com as investigações. Assim, todo e qualquer processo que for alvo de investigação será avaliado pela administração pelos meios cabíveis”.
Desvio de verba em Valadares teve contratação de empresa de fachada
Operação aponta pagamento por serviços não prestados, aluguel de veículos inexistentes, contratação de empresa de fachada e vida luxuosa de envolvidos em desvios em Valadares

Governador Valadares – A audácia da organização criminosa no desvio da verba enviada pelo Palácio do Planalto para reparar os estragos causados pela chuva de 2013 em Governador Valadares surpreendeu os investigadores da Operação Mar de Lama, indicam três relatórios – Controladoria Geral da União, Ministério Público Estadual e Polícia Federal – a que o Estado de Minas teve acesso.
Técnicos da ex-Controladoria Geral da União (CGU), atual Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle (MTFC), encontraram indícios de fraude descrita no tópico G3 do relatório da instituição, que versa sobre diárias que somam R$ 44,1 mil, referentes ao aluguel de caminhões tipo toco.
“Ao analisar as placas constantes dos controles de veículos e equipamentos e confrontá-las com a base de dados do Denatran, observou-se que cinco deles apresentaram incompatibilidade com as características exigidas na contratação. Destas, duas placas não possuíam veículos vinculados. Para as demais, constavam no cadastro veículos que não apresentavam características mínimas para a execução dos serviços que foram contratados, sendo dois de passeio”, informou o relatório da ex-CGU.
O relatório baseou investigações do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal. Os investigadores concluíram que uma das empresas contratadas era um empreendimento de fachada. “Não tinha sequer sede própria”, informou o promotor Evandro Ventura, que denunciou 36 pessoas, na quarta-feira, por corrupção em Governador Valadares.
Trata-se da Fejoli Florestais Ltda, cuja investigação apurou pagamento indevido por serviço já prestado anteriormente. “A bem da verdade, a empresa Fejoli recebeu quase R$ 2 milhões a mais por um serviço já contratado e prestado. Não houve qualquer acréscimo ou alteração no objeto do contrato ou dilação do período de realização dos trabalhos que pudessem justificar a nova contratação”, informou o relatório da CGU.
O delegado da PF Cristiano Campidelli, em seu relatório, considerou que a contratação de uma empresa do ramo florestal para o serviço de limpeza urbana feriu “os princípios da legalidade, moralidade e eficiência”. “Uma empresa de fachada, sem funcionários ou mão de obra próprios, cujas atividades, até então, eram absolutamente estranhas ao objeto da contratação”.
PADRÃO MILIONÁRIO O desvio do erário aumentou o patrimônio dos cabeças da organização criminosa. Em telefonemas gravados com autorização da Justiça, os investigadores descobriram que Omir Quintino, considerado o cérebro do esquema, tinha salário em torno de R$ 6 mil e levava uma vida com padrão milionário.
“Vilmar Rios (ex-diretor do Saae e indiciado como o tesoureiro da organização) disse que Omir ganha R$ 6 mil por mês e gasta R$ 100 mil por mês”, informou o delegado da PF. Em outra gravação, Vilmar contou a um interlocutor que Jefferson Santos (ex-diretor do Saae e que captava empresas para o esquema) tinha “salário de R$ 1,4 mil, muito embora tenha adquirido um veículo Outlander pelo preço de R$ 150 mil, com sistema de DVD que custou R$ 10 mil”.
Os três diretores do Saae foram detidos pelos investigadores e exonerados pelo município. Jefferson estaria disposto a assinar uma delação premiada. A prefeitura abriu sindicância para investigar todos os contratos com carimbo de suspeita. Os serviços também passam por auditorias do município.
Na área urbana e na rural, sobrou para os moradores resolver os problemas gerados pelas chuvas, como a improvisação de ponte sobre o córrego Cassianinho para dar passagem à produção agropecuária.

Fraudes praticadas em série
O desvio da verba federal enviada a Valadares para reparar danos causados pela chuva é a ponta do iceberg da corrupção na cidade, onde um dos envolvidos foi comparado em relatório da força-tarefa a um personagem do filme Tropa de Elite 2, de José Padilha. Os investigadores descobriram que os agentes públicos que comandaram o esquema praticaram várias outras fraudes, algumas envolvendo contratos que, a longo prazo, somam mais de R$ 1 bilhão.
Na quarta-feira, o Ministério Público Estadual denunciou 12 vereadores sob acusação de receberem um “mensalinho” da empresa de ônibus que detém o monopólio do transporte público de passageiros na cidade. Os valores variaram de R$ 2,6 mil a R$ 20 mil, dependendo da influência do parlamentar.
No relatório da Polícia Federal, o jornalista e vereador Ricardo Assunção, que apresentava um programa policial numa emissora local e está detido sob acusação de receber R$ 20 mil em propina, foi comparado a Fortunato, personagem de Tropa de Elite 2. Na ficção, Fortunato é um jornalista corrupto, que se elege deputado estadual. A Mar de Lama concluiu que a organização criminosa usou a mídia para promoção própria.
“Ricardo Assunção (…) exibiu reportagem onde a prefeita, Elisa Costa (que não participa do esquema e não é investigada), e Omir Quintino (preso desde abril) beberam a água tratada do Saae, oportunidade em que Ricardo, a exemplo de um personagem do filme Tropa de Elite, usou do seu programa para promover politicamente o governo, chegando a dizer: ‘Da torneira, gente… Direto da torneira, água tratada. (…) Saúde meu povo! E para os fofoqueiros de plantão, os que querem o mal, os que ficam tirando proveito politiqueiro (…)”.
A prefeita e o então diretor-geral do Saae beberam água durante o programa do jornalista vereador para mostrar à população que podia confiar no líquido tratado pela autarquia municipal. Vale lembrar que, quando o programa foi exido, a lama que vazou da Barragem do Fundão, da Samarco, havia chegado há poucos dias no trecho do Rio Doce que corta o município. A reportagem não conseguiu contato com o advogado de Ricardo Assunção.
A HISTÓRIA DO DINHEIRO DESVIADO
Data Ocorrência
2013 Chuvas fortes causam alagamento e destruição em Valadares
27/12/2013 A presidente Dilma Rousseff, então em exercício, visita a cidade
14/02/2014 A União, por meio do Ministério da Integração Nacional, destina R$ 4,7 milhões ao município
2014 Empresas são contratadas para reparar danos
13 a 15/10/2015 Técnicos da CGU constatam fraudes no uso do recurso